terça-feira, 28 de outubro de 2008

o oposto do obituário seria talvez quem nada fosse beneficiado pela morte de algo. imagino-me como um oposto de obituário, desfeita pela morte de amores que nem chegam a existir. coisas que construo solitária e que destruo logo em seguida, por conta própria outra vez. e assim vou andando sem mais nem outro mais, sem nem ao menos o menos. andando só por não correr ou não me manter parada. e quando durmo então, que arredios são esses sonhos que perseguem minha sensatez. aí ando pra trás, só por andar, só para não correr ou não me manter parada.
são preferíveis as vezes que ando pra frente, querendo quase chegar, mas nem sempre alcançando. aí desapontamento, quebra de expectativa -odeio quebra de expectativa- última gota de água desperdiçada no deserto. grandes coisas, mero abraço. estupidez e imbecilidade elevadas ao tudo, até o último número da conta da última prova colegial. odeio provas colegiais, e também as universitárias e principalmente as provas de amor, acho ridículo e inútil, sofrimentos a parte.
e o coração o que tem a ver com isso, por que insistem em colocá-lo como símbolo de amor, é a cor? é por ele não ser o próprio cérebro, já que o amor é estúpido e despreferível à razão. acho mesmo, é isso que concluo em toda segunda feira à tarde, grandes coisas esse negócio de amor, grades merdas. odeio segunda feira depois do almoço.
quando eu piso no bueiro por descuido, penso que poderia ter caído naquele momento e melar-me de esgoto, ou quem sabe morrer afogada na água suja da cidade inteira, bater a cabeça... vai saber, então sempre que isso acontece, digo; pisar no esgoto por falta de atenção, dou graças por ter tido tamanha sorte. isso muito poderia passar, quando por descuido incluo uma pessoa na minha vida, o problema é que "I fall in love too easily" e aí fico nessas, caio no bueiro, apaixono-me, espero. tudo uma grande merda.
tenho ódio pelo amor, pena dos apaixonados idiotas. não, não tenho pena de mim mesma, só dos outros e é do grupo no geral, não de cada um individualmente, porque eu não gosto de ter pena de ninguém.
aí é isso, queria mesmo era ser abduzida por ETs, seria bom pra mim, em uma terra sem paixões que nos matam, e amores que morrem. Que besteira...

Marejada


Se entreguei uma flor
e foi de jardim algum que arranquei
é porque quero que entre outras tantas, essa noite, esteja comigo

Uma promessa eu fiz a mim mesma:
era a de não entregar mais nada
pois descumpri-me feliz, surpresa...
rejeitei minha regra
quando enroscada em braços que não me pertenciam
senti que era isso que para sempre queria sentir
e que não entenda-se o sempre como eterno
porque de eternidade já estou quase cansada
apenas assombro-me com a possibilidade de não ter mais.
Escrevo então marejada pelos muitos poucos que me faltarão contar

Acordei em volúpia,
aprendo o prazer dia a dia
o prazer.
atrasada, sempre e eternamente
E que me cheguem mais doses, mais cigarros!
Mas não me chega mais nada.
Envolvi e entreguei o que não queria dar;
o que mais temia dar
Restou um vestígio e um sussurro,
mais distantes noite a noite.

ao amor;
cíclico, fásico, novo, crescente, cheio
e que míngua tão raras vezes (nesse caso falo por mim)
Em Lua cheia fico tingida, Lua nova; desbotada
trôpega e arfante, pois mal alcanço o ar que há de se respirar

Acordei em volúpia
mas era sonho outra vez
Cercadas todas as saídas
fuga impalpável, transparente
Perdi-me de novo no mar...

E termino marejada, esse instante lamento.
ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ.
DE ARIANA PARA DIONÍSIO.
Hilda Hilst

I

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.


II

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

III

A minha Casa é gurdiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?

IV

Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante

Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.

Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana

Não essa que te louva

A cada verso
Mas outra

Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente

E por isso talvez
Te aborreças de mim.

(...)

segunda-feira, 27 de outubro de 2008


tomei a liberdade e as dores de Dionísio, nem aos pés da mestre, mas uma resposta.

resposta de Dionísio

Não fui esta noite.
estive menos Dionísio, então não queria ter menos Ariana
amanhã
não vou,
pois tua casa inebriada de amor teu
arranca-me a capacidade de ser mais.
sendo eu, o teu amor; sou só

sim, arde-me a tua vida poesia
tão pouco secreta para mim.
Não fui, para que ouvisse mais o mundo
e pudesse também parar em frente à petúnia
e contemplá-la com sua forma poeta

Não me sonhes, Ariana
quero pleno, dormir minha noite,
sou um caos

Porque não sei se te amo
tento não te amar demais
é mais fina a dor que eu não sinto

Porque, Ariana, não sei se te amo
sou rude ante à ardência da tua espera
apalpo-te desdenhosamente
embebido do teu suplício
Mas quando contigo, sou seu
e me apavoro ao ir embora

Porque não sei que te amo
meu bem,
não volto mais
Fugia da chuva como quem foge do cão. De cima para baixo, buscava uma vão no céu, que não o deixasse molhar. Em baixo do viaduto, lotação; esgotado. Os toldos de lojas levavam um aviso em letras garrafais, dizendo: proibido acolher vagabundos.
Árvores não havia por ali, pensou então no tal do lado bom, árvores atraem raios. Eletrizado então, não morreria. Mas daquela pneumonia que ia e vinha, sentiu que dessa vez poderia não escapar.
Corria, corria, como se as nuvens cinza, quase pretas, em algum momento fossem desaparecer. E nada acontecia.
Muito pelo contrário o mundo todo parecia ficar mais escuro, mais aguado.
Estava completamente encharcado, um verdadeiro... daqueles que chamam de pinto molhado. Sua calça, apesar do pouco tecido conseqüente de inúmeros e largos rasgos, pesavam-lhe as pernas. "É jeans de qualidade"-pensou ele.
Quilômetros pareciam ter sido percorridos, faltava-lhe energia, fôlego, calor. Se ao menos tivesse um cigarro a prova d'água, poderia apreciar o temporal de outro ponto de vista; sentado, soltando fumaça pela boca e pelo nariz (o que mais gostava). Nem cigarro molhado achara nos bolsos, não tinha nada, nem saída, nem entrada.
Ele estava arrasado, liquidado, morreria ali mesmo, e sem cigarro. Já engasgava dramaticamente com a chuva, quando uma sombrinha bateu-lhe nas pernas jeans. Tomou-o no mesmo momento em que as grossas e pesadas gotas davam lugar a uma garoa fina, quase imperceptível. E um arco-íris, como um sorriso pra baixo, cortou todo o firmamento.
Aí concluiu: "Pronto, morri, to no céu". E pra quem há pouco fugira do cão, essa nova situação era mais do que agradecida.
Durante o tempo que lhe restou, viveu tossindo e feliz. Os olhares feios que lhe lançavam na rua, eram apenas anjos que acordaram mal-humorados depois de tanta chuva. "Muito compreensível...".
Deu-se dois dias de sol forte, e alegre, o pobre morreu de pneumonia.